A grade que separa vira ponto de encontro entre pai e filho

Um agradecimento ao beisebol pelo reencontro entre o menino e o homem. Entre o pai e o filho. E entre o homem e o esporte.

Flavia Cabral

6/5/20254 min read

No lugar, vieram anos de cadeiras de rodas, cama, gessos, fisioterapias e cirurgias — mais de dezesseis ao todo que, aos olhos do menino pareciam castigos. Só aos 14 anos ele pôde, enfim, deixar o centro cirúrgico para trás e andar quase sem sequelas. Mas o corpo já havia sido moldado pelo medo, pela dor, pelo “não” repetido a um menino que queria correr, mas não podia — ou não conseguia.

Foi então que ele encontrou a música — e se reconstruiu nela. Reinventou o corpo pela alma e, em vez dos chutes e arremessos, tocava acordes e dedilhados na guitarra. Tocou em festas, igrejas, bares, palcos grandes e pequenos. Isso moldou a vida dele: os amigos, as vivências, as histórias são todas relacionadas à bandas. Inclusive foi em um desses palcos que nos conhecemos e nos apaixonamos.

Anos depois, nasceu nosso filho, o Nico, que era o oposto do que o pai viveu. Era um menino com o corpo inteiro gritando por movimento. Desde pequeno, corria, pulava, se pendurava e inventava esportes e regras. Pedia bola, chuteira, campo. Enquanto o pai tentava ensinar cifras e acordes, o filho queria placares, passes, bolas. Nico parecia ter nascido atleta — desses que contam os dias para o treino e dormem sonhando com a próxima partida. E como gostava de qualquer esporte com bola — desde bola de gude até polo aquático.

Dá pra imaginar o susto? O medo de não conseguir acompanhar, de não saber ensinar, de não estar junto? A gente tinha medo de forçar demais o Nico, de doer, da doença atacar quem estava crescendo, como atacou o pai. E, ao mesmo tempo, não queríamos tirar a liberdade dele de se movimentar. Quantas vezes o levamos ao ortopedista por uma dor simples, com aquele receio calado de que tudo se repetisse…

Com todo esse movimento, colocamos o Nico em vários esportes. Um deles foi a equitação, que parecia promissor. Afinal, Eduardo havia feito anos de equoterapia, e os cavalos tinham sido parte importante do seu tratamento. E Nico parecia adorar os animais também. Mas montar não fazia sentido quando se podia brincar com asas soltas, correndo atrás das galinhas, pelo rancho com o amigo. Tentaram também a bicicleta, que era uma das poucas memórias físicas boas que Eduardo guardava da infância. Mas Nico caiu, se machucou, e o medo chegou antes de ele entender as diversões do esporte. Por fim, natação, o que o Nico achou monótono e era uma briga todos os dias (talvez, se tivesse uma bola para ele nadar atrás…).

E por um tempo, ficamos sem opção de novo.

Até que o beisebol apareceu. Não como um chamado — mas como uma possibilidade. Um esporte que nenhum dos dois conhecia, mas que, por alguma razão, parecia permitir o encontro. E eles foram. Sem saber jogar, sem entender as regras — mas foram. E, na dúvida, ficaram. Porque o beisebol tem algo que nenhuma outra modalidade ofereceu a eles: o espaço do meio. Não exige correr o tempo todo. Não exige o corpo o tempo inteiro. Mas exige presença, concentração e inteligência para improvisar — como a música.

E, nos treinos, os dois estavam ali. No mesmo espaço, um na grade e o outro no campo. O pai, que nunca foi atleta, e o filho, que nasceu atleta. Um com as mãos calejadas da guitarra. O outro, das rebatidas. Os dois aprendendo algo novo e maior do que eles mesmos.

Aquilo que nós (e quase todos) achamos que nos separaria do Nico por causa da frequência dos treinos, da quantidade de campeonatos, do fato de não sabermos jogar e ficarmos sempre do lado de fora, como torcida — acabou virando conexão. O que poderia afastá-los pela diferença, virou ponte e admiração. E a grade que separa a torcida do time no campo virou aproximação. De um lado, o pai grita pro filho. Do outro, o filho ouve — e se fortalece.

Aos poucos, o beisebol foi ressignificando também a relação do Eduardo com o próprio corpo. Ele, que cresceu sem qualquer tipo de atividade física, começou a buscar o movimento por escolha . Hoje, faz musculação quase todos os dias, faz cardio, perdeu peso e ganhou saúde. Fez as pazes com o físico, com o espelho, com os limites que antes pareciam definitivos.

E eu assisto. Às vezes da arquibancada, às vezes da beira do campo, outras tantas da janela da anotação. Vejo o Eduardo ajustando a cadeira, o cooler, o boné — e afinando sua principal música: a voz que grita forte, até assustar quem não conhece a história.

(Sim, há quem reclame, mas é porque não sabem que, por trás daquele grito visceral, há um tanto de libertação. Um alívio profundo por poder assistir o filho brilhar justamente naquilo que lhe foi arrancado de forma tão brusca.)

Vejo o Nico lá dentro, aquecendo o arremesso ou o taco, procurando a voz do pai — aquela música que empurra, que leva ele mais pra frente. Sempre. Em todos os jogos.

Eu só tenho a agradecer ao esporte por costurar o que o tempo, a dor e o medo quase separaram; por ser essa ponte entre dois mundos que pareciam tão distantes, mas se encontraram no caminho do meio. E por mostrar que amor de pai e filho também pode se medir em innings, rebatidas e gritos da torcida — barulhentos, cheios de presença e de reconciliação do menino que se foi com o pai que hoje se é.

Aos 3 anos, Eduardo, meu marido, parou de andar. As dores eram tão intensas que ele já não conseguia ficar de pé, só engatinhava e se arrastava pela casa. Depois de procurar muitos especialistas, veio o diagnóstico: Doença de Legg-Calvé-Perthes — uma doença rara que necrosa a cabeça do fêmur e impõe uma sentença silenciosa. Ele não poderia correr como os outros meninos. Não poderia pular, nem jogar bola. Não viveria aquele tipo de infância feita de suor, esportes e joelhos ralados.

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