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Quando uma vaga vale mais do que a gente vê
E o fair play revela os gigantes de 10 anos que já entendem o que é ser grande numa seletiva
Flavia Cabral
7/14/20255 min read
Segunda-feira. O silêncio da manhã parecia mais profundo do que o habitual. Nico e Olivia dormiram até 9:30 — um recorde, revelando o corpo exausto depois de um final de semana exigente. É o primeiro dia das férias — da escola e, agora, também dos treinos de beisebol, que fizeram uma pausa depois de um fim de semana intenso: a seletiva para a seleção brasileira sub-10 pan-americana, que acontecerá na Venezuela.
Cerca de 80 meninos de 9–10 anos disputando 18 vagas. Todos nervosos (meninos e pais), sendo avaliados e querendo ter o orgulho de representar o Brasil. E, mesmo assim, algo raro aconteceu: vimos crianças torcendo umas pelas outras. Havia incentivo. Apoio. Aplauso. Torcida silenciosa. Dicas. Parecia que cada um sabia que, se não fosse ele, tudo bem que fosse o amigo.


Nico Cabral, #49 de Atibaia, e Jeremias Aires, #31 do Gecebs, aquecem durante a seletiva do fim de semana (Foto: Guilherme Gibim)
Foi nesse clima que vimos Jeremias tomando café no sábado de manhã, assim que entramos no refeitório do CT Yakult. Jogador brilhante do Gecebs, time de tradição, já cruzou com o Nico em muitos campeonatos desde que começaram no beisebol (eles são de 2015). Alto, esguio, com uma envergadura que salta aos olhos, tem um braço privilegiado e um domínio impressionante para alguém que ainda vai completar 10 anos. Caminha com leveza, mas impõe presença — mesmo em silêncio. E no montinho… É preciso. Firme. Seguro. Domina os arremessos com naturalidade, como se tivesse nascido dentro de um campo. Um talento silencioso — e inegável. É, sem exagero, um dos melhores pitchers da categoria hoje.
Mas a gente não esperava vê-lo naquela seletiva. O sotaque entrega: Jeremias (ou Jeremiah, como eu o chamo) nasceu na Venezuela e, pelas regras, só brasileiros podem participar de seleções pan-americanas nacionais. Descobrimos que o menino tem dupla cidadania — o avô é brasileiro — e, portanto, estava ali com legitimidade plena e muito merecimento. Quando o vimos ali sentado com os colegas, houve surpresa e sorrisos (e a quase certeza de que agora seriam 17 vagas para cerca de 79 meninos).
Sábado à noite, depois de todos os drills, jogos e avaliações, os meninos tiveram um tempo livre entre o jantar, o banho e o descanso para o próximo dia. Jeremias apareceu no alojamento de Atibaia para brincar. Uns 10 minutos depois, atrás dele, a mãe chegou, rindo e brincando:
"Vocês sequestraram meu filho pra jogar em Atibaia?"
E bem que a gente queria — o menino é pura simpatia, humildade, sorrisos e técnica perfeita. Ficamos ali, observando todas as crianças juntas — de times diferentes, sotaques variados — conversando e brincando como se fossem uma só turma.
Foi então que a mãe do Jeremias começou a contar a história deles — uma história riquíssima de emoção, que encheu os olhos de lágrimas.
Quando vieram ao Brasil, Jeremias tinha uns cinco, seis anos. Filho de pai e mãe venezuelanos — a mãe, com o nome mais significativos que já ouvi: Roraima — Jeremias nunca mais voltou. Fez do Brasil a sua casa, do campo de beisebol o seu lugar de pertencimento. E do Gecebs, o time do coração.


Nico e o sensei de pitcher venezuelano Thony Zorilla
E, claro, não dá pra falar de beisebol no Brasil sem reverenciar a base que nos sustentou por décadas: a comunidade japonesa — que temos no sangue. Foram os nipo-brasileiros que fincaram as estacas, construíram campos em terrenos improváveis, ensinaram as primeiras gerações a respeitar o esporte. Os que jogavam descalços com a mesma seriedade de quem disputa final de campeonato.
Agora, o que vemos é um campo plural. O menino de sobrenome japonês (Kawazoe) dividindo posição com o menino de sotaque espanhol (Aires). O beisebol brasileiro se tornando, cada vez mais, um espelho do país que somos: diverso, miscigenado, resiliente.
Jeremias é um retrato dessa imigração. A mãe disse que além do desejo de entrar para a seleção brasileira, o menino quer muito — muito mesmo — pisar novamente na terra que eles chamam de “país-mãe”. Ela relatou o quanto essa vontade se transformou em esforço e treino, tanto que tinha machucado a canela. Mas, ainda assim, não tinha desistido de seguir.
Chamei o Nico e contei um pouco dessa história, cheia de emoção. Ele imediatamente procurou Jeremias, deu um tapa nas costas e falou, com um sorriso imenso:
"Jeremias, você tem que passar nessa seletiva."
"Você também, amigo", ele respondeu.
E ali, naquela conversa de dois segundos, coube tudo o que acredito que o esporte pode ensinar. Numa seletiva em que a ansiedade poderia virar competição cega, o que se viu foi reconhecimento. Uma criança torcendo sinceramente por outra, mesmo sabendo que poderiam disputar a mesma vaga. Essa é a verdadeira vitória.
Os resultados da seletiva devem sair na próxima semana. A ansiedade é grande. Nico sabe o quanto se dedicou — treinou duro, se entregou, enfrentou o nervosismo e mostrou, mais uma vez, que ama esse jogo com o corpo inteiro. Tenho certeza de que, independente do resultado, ele está orgulhoso de si por ter dado o máximo que podia. Nós também.
Mas o que mais me toca, no fim de tudo, não é a vaga. É essa capacidade que ele — e tantas outras crianças — demonstraram de enxergar o outro, de aplaudir o esforço genuíno, de torcer mesmo quando estão competindo. Porque é isso que fica e o resto, é a história que eles mesmo estão escrevendo.


Jere na rebatida, durante a seletiva destre fim de semana (Foto: Guilherme Gibim)
Roraima contou que estavam ali, sim, competindo por uma vaga — mas também carregavam um sonho maior: aquela seletiva era a primeira oportunidade de, talvez, Jeremias voltar à Venezuela após 4 anos. E mais: voltar defendendo a camisa do país que os acolheram.
O beisebol no Brasil tem mudado e uma parte significativa dessa transformação veio de fora. Uma das maiores influências nos últimos anos tem sido a dos venezuelanos — famílias que cruzaram fronteiras com filhos pequenos e sonhos grandes. Trazem técnica refinada, paixão, Reggaeton e generosidade. Uma entrega ao jogo que contagia.
Aqui em casa, esse movimento tem nome, rosto e ensinamento: Nico já foi treinado por três senseis venezuelanos (Jhonathan, Thony e Hector). Cada um, à sua maneira, ensinou e ensina bem mais do que técnica. Ensinam intensidade, exigência, amor pelo jogo, coragem — e também respeito. Porque ser grande, eles mostram, não é só saber jogar. É saber crescer junto com força, raça e determinação.
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